Márlon Reis: 'Facilidade de burlar lei estimula uso do caixa dois'
31/12/12 00:00RAYANNE AZEVEDO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Idealizador da Ficha Limpa e fundador do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), o juiz Márlon Reis, 42, defende uma reforma eleitoral que amplie o financiamento público de campanha, proíba as doações de empresas e imponha limites às transferências de pessoas físicas.
Para o magistrado, o sistema brasileiro de financiamento está “todo errado”. “A facilidade de burlar a lei estimula a utilização de recursos não contabilizados.”
Neste ano, com base na Lei de Acesso à Informação, Reis passou a exigir a prestação de contas preliminares dos candidatos na zona eleitoral onde atua, no Maranhão. A iniciativa levou o TSE a estender a exigência a todo o Brasil.
FOLHA – Qual sua avaliação sobre o sistema brasileiro de financiamento de campanhas?
MÁRLON REIS – O meio não é passível de controle, porque se baseia naquilo que o candidato diz que movimentou. É impossível identificar quem realmente recebeu dinheiro da campanha, pois não há como vincular as receitas às despesas. A própria Justiça Eleitoral não tem estrutura para fiscalizar, e a facilidade de burlar a lei estimula a utilização de recursos não contabilizados. É uma prestação de faz de conta. A base do financiamento são doações feitas por empresas com interesses diretos em futuras decisões do governo. Aquelas que ainda não têm contratos com o poder público doam justamente porque pretendem ser contratadas. Outros problemas são a pulverização de doações por meio de subsidiárias e os repasses aos partidos, que distribuem o dinheiro entre os candidatos. Isso impede que o eleitor saiba antes do pleito quem efetivamente doou, porque só vai aparecer na prestação de contas do partido no ano seguinte ao da eleição.
Em que medida o volume de recursos garante o sucesso de uma candidatura? Qual a relação entre financiamento e cacife político?
O volume não garante, mas favorece. A probabilidade de vitória em uma candidatura com mais recursos fica muito maior, pela capacidade de mobilização de apoios. O dinheiro permite que se coloquem cabos eleitorais a serviço da candidatura. São políticos, ex-mandatários, presidentes de associações e sindicatos que são cooptados financeiramente pelos mais ricos e tratam de assegurar a transferência dos votos que estão na base deles. Os financiadores de campanha tendem a buscar os candidatos que estão bem nas pesquisas. Isso indica a vontade de fomentar uma relação com o futuro mandatário. Há casos em que o eleitorado tem mais independência, mas é exceção.
Em que aspectos ficou mais caro ser candidato desde a redemocratização, nos anos 80? E como isso impactou o financiamento de campanhas?
A propaganda está cada vez mais sofisticada, com profissionais especializados e empresas que demandam altos custos para realizar bem o seu trabalho. Outro fator é o aumento, eleição após eleição, do preço cobrado pelos cabos eleitorais. Eles não apoiam por convicção ideológica ou partidária; apoiam como um negócio. A base dos votos é obtida através da mobilização por líderes pagos, e esse valor tem sido cada vez mais alto. Quanto mais alto o preço é, mais se tem que arrecadar, porque é preciso cobrir os custos. [Compra de apoio] É abuso de poder econômico, mas passa longe dos olhos da Justiça. A exceção foi o mensalão.
Que vantagens há para uma empresa em financiar candidaturas?
A lógica é ter espaço no futuro governo. O financiador de campanha terá mais facilidade em encontrar abertas as portas dos gabinetes –isso quando a relação é mais sadia. Mas muitas vezes acontecem acordos que envolvem o retorno financeiro da empresa mediante a prática de ilicitudes. Essa relação fulmina a futura administração, porque a doação será paga com verbas públicas que não estavam destinadas a isso. E daí advém todo o ressentimento que a sociedade acaba tendo depois com a qualidade de certas administrações.
O que é o caixa dois, em sua opinião, e como combatê-lo?
É dinheiro ilegal, criminoso, e que não pode vir a público justamente pela presença de interesses ilícitos entre doador e financiado. Como se trata de uma relação espúria, ilícita, é preciso ocultar. E assim nasce o caixa dois. A melhor forma de combatê-lo é usar a tecnologia para tornar a prestação de contas mais auditável.
Por que, em sua opinião, muitas empresas têm preferido doar aos partidos a doar diretamente aos candidatos?
Para não terem seus nomes vinculados às imagens de candidatos desgastados, vinculados a práticas de corrupção. Há necessidade de estar com esses candidatos quando eles têm grande chance de vencer em suas bases locais, mas isso não é feito publicamente porque o líder ou o partido está envolvido em escândalos.
Como o sr. avalia os mecanismos de fiscalização e regulamentação (do financiamento de campanha) existentes hoje no Brasil?
O modelo é extremamente ultrapassado. Não se baseia na tecnologia nem é condizente com o nível de proteção das instituições públicas que a sociedade exige hoje. É liberal demais, e precisa ser substituído por um modelo que assegure transparência e auditabilidade das contas. As arrecadações, despesas e prestações de contas são permeáveis à fraude com muita facilidade. O modelo está todo errado, é indefensável. O prazo que o Ministério Público tem para analisar as contas de campanha e representar contra candidatos é curto. Isso enfraquece muito o nosso sistema.
Qual a sua opinião sobre limites para arrecadação ou despesas de campanha?
Eles são fixados pelos partidos de acordo com sua vontade. A lei não prevê limite algum, o que já demonstra como nosso sistema é flácido. A lei das eleições diz que outra lei deve ser editada para fixar o limite de movimentação de recursos de campanha. Só que essa lei nunca foi editada pelo Congresso. Compete aos partidos indicar esses valores, e eles falam o que bem entendem. Hoje, temos um sistema tão ruim que é possível continuar arrecadando mesmo após a eleição. Alguém gasta mais do que angariou –o que já demonstra muito como ele será como governante– e depois vai atrás do que falta? É perigoso alguém já eleito sair arrecadando entre as empresas. Significa que ele mal tomou posse e já está assumindo compromissos com empresas que poderão depois cobrar a fatura.
Que avanços no acompanhamento e controle das eleições ocorridos no último quarto de século o sr. considera mais significativos?
A lei das eleições, que pela primeira vez previu a possibilidade de sanções mais graves para quem burlar o sistema. Ela estabeleceu a perda do mandato em caso de infração às normas de financiamento. O problema é aplicar isso diante das dificuldades que o modelo de financiamento atual apresenta para qualquer tipo de controle. Depois, veio a informatização do voto, que pôs fim à fraude e tornou possível que começássemos a pensar em outros temas além da contagem correta dos votos. Tivemos ainda a lei contra a compra de votos e, mais recentemente, a Lei da Ficha Limpa.
Qual sua opinião sobre financiamento exclusivamente público de campanhas?
Sou a favor da ampliação do financiamento público. Ele deve ser melhor tratado pela legislação para assegurar igualdade e diminuir o impacto dos interesses privados nas campanhas. Defendo a convivência com a doação por indivíduos, só que de forma limitada e submetida a mecanismos de controle e fiscalização. É possível ir mais longe sem comprometer o Orçamento, reduzindo a influência de empresas que depois pesariam muito no orçamento público com o retorno que esperam receber.
Quais aspectos de financiamento público de campanhas temos hoje no Brasil?
O horário eleitoral no rádio e na TV, por exemplo, é importante e eficiente porque abre espaço para que mesmo os que têm menos poder econômico possam aparecer para o eleitorado. Temos também o fundo partidário, cujos recursos podem ser destinados ao financiamento de campanhas.
Quais aspectos de leis estrangeiras sobre financiamento de campanha o sr. consideraria interessante pensar em adotar no Brasil?
Ampliação da presença do financiamento público, incentivo às doações individuais com limites definidos e proibição de doações de pessoas jurídicas, que trazem mais riscos do que os benefícios para o sistema.
Como envolver mais o eleitor na fiscalização das campanhas?
Hoje parte-se do pressuposto de que o eleitor é muito passivo. Ele é visto como o gado a ser manipulado. O sistema deveria ser mais inclusivo e estimular a participação. Seja no financiamento das campanhas, incentivando pequenas doações para os candidatos de sua preferência, seja no controle, criando mecanismos que permitam que o eleitor possa facilmente ter acesso transparente às contas de campanha. Veja o grande número de pessoas se mobilizaram para a aprovação da Lei da Ficha Limpa. Esse tema contagiou as eleições, mas não há espaço para manifestação da vontade do cidadão. Essa vontade é calada artificialmente.
E no tocante ao financiamento de campanha, como avalia a participação do eleitor como doador?
Uma das maiores esperanças que eu tenho é ver o eleitor tornar-se protagonista. Mas isso não deve acontecer agora no Brasil porque o próprio sistema não recomenda. Não é racional fazer doação individual num modelo baseado em doações de bancos, empreiteiras e mineradoras, como é hoje.
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São artigos como esse que nos fazem clarificar os pensamentos. Parabéns ao Dr. Márlon Reis.